AS FLORES QUE VOCÊ ME DEU
Eu
estava apaixonada, não conseguia encontrar efeitos ruins nele; para mim, tudo
que ele fazia era para o meu bem e para me ter mais perto dele. Nossos beijos
eram quentes, os dias ao lado dele sempre foram muito calorosos, eu me sentia
sexy, única e adorava a forma como ele me olhava.
Minha autoestima sempre esteve lá em cima, eu me
sentia desejada por ele de um jeito que nenhum outro me fez sentir. Então, em
uma noite em que ele estava alcoolizado e cheio de tesão, ele me perguntou se
poderia gravar o nosso momento íntimo. Sem pensar duas vezes, eu disse que sim,
afinal seria algo para nós dois e eu tinha curiosidade do meu desempenho entre
quatro paredes.
Ele posicionou a câmera em cima de uma cômoda de
madeira no quarto do motel em que estávamos, e logo começamos a nos amar. Mas
havia algo diferente naquela noite: as investidas dele em mim passaram a doer
e, mesmo com a minha reclamação, ele continuou insensivelmente. Tentei
empurrá-lo para que saísse de cima de mim, mas ele prendeu minhas mãos e me
mandou gemer alto porque, naquele momento, ele iria me rasgar todinha.
Após longos minutos aterrorizantes, com meus
gritos de dor, ele finalmente se satisfez, me deixando no canto da cama, como
um molambo. Todo o meu corpo doía, as marcas de suas mãos estavam tatuadas por
toda a minha pele e eu não sabia como reagir; não conseguia falar, e somente as
lágrimas desciam rapidamente pelo meu rosto.
Ele levantou-se da cama com um sorriso estampado
na boca, desligou a câmera que filmou todo aquele momento de terror,
aproximou-se de mim ainda pelado e deitou-se ao meu lado como se nada tivesse
acontecido. Seu hálito de bebida exalava naquele quarto. Ele novamente tocou em
mim e eu me arrepio — um arrepio de medo e dúvidas.
Por que ele me machucou dessa forma? Mas ele pode
ter feito isso porque estava bêbado... Se ele estivesse sóbrio, ele faria isso?
Acho que não. Os pensamentos inundaram minha mente e eu olhei para ele.
— Você me machucou. Por que não parou quando eu
pedi?
— Desculpe, amor, acho que me empolguei. Você
sabe que estou um pouco alterado por causa da bebida. Me perdoa? Prometo que
não vai mais acontecer — ele beijou minha testa — Vamos tomar um banho juntos?
Quero consertar a besteira que fiz.
— Tudo bem, vamos.
Tomamos banho e, logo em seguida, ele insistiu em
dirigir. Tentei convencê-lo de que não era uma boa ideia, afinal ele estava
alcoolizado, mas ele insistiu e eu acabei cedendo. Após um longo trajeto, no
qual o carro fazia zigue-zague na pista, ele me deixou em casa, beijou minha
testa e depois me deu um longo beijo na boca. Disse que me amava, e, ao ouvir
aquelas palavras, tive certeza de que o amava também. Relevei o que aconteceu,
afinal foi um momento isolado, e em meu íntimo tive a certeza de que eu o queria
para sempre.
No dia seguinte, João me trouxe uma tulipa
vermelha para se desculpar pela noite anterior. Conversamos sobre o que
aconteceu, e João se mostrou arrependido, comovido; chorou e me pediu perdão.
— Perdão, amor, eu agi como um idiota, você não
merecia isso.
Mostrei as marcas que ficaram em meus braços,
coxas e pescoço.
— Espero que isso nunca mais aconteça, João. Eu
fiquei com medo de você e me senti um objeto sexual, onde o seu prazer foi
superior ao meu. Senti que meu corpo estava sendo usado e abusado por você.
Ele se ajoelhou diante de mim, com os olhos
lacrimejados, e prometeu que isso nunca mais iria acontecer. Logo nós nos
abraçamos e eu o perdoei. E essa foi a primeira vez que ele me deu uma flor
vermelha.
Nosso
relacionamento tinha como base a compreensão. Eu sabia que João era inseguro e
ciumento, e eu adorava vê-lo com medo de me perder. Certa vez, saí com meus
amigos da faculdade: Tony, Eliza, Daniel e Liz. Fomos a uma pizzaria após três
anos do nosso grupo separado.
Tomamos alguns drinques e tiramos inúmeras fotos.
Tony me chamou para tirar uma selfie com ele e eu aceitei. Nós dois, desde o
primeiro período da faculdade, nos identificamos e, desde então, nos tornamos
grandes amigos. Tony atualmente namora Amanda, que está fazendo mestrado em
psicologia em Pernambuco. Eu ainda não a conheço, mas pelo sorriso do meu amigo
e pelos inúmeros elogios a respeito dela, tenho certeza de que ela o faz feliz.
Pedi mais um drinque e brindei à nossa amizade
com um largo sorriso no rosto. Daniel se levantou da mesa, ergueu sua taça para
o alto; já estava um pouco embriagado e falava sem parar:
— Eu amo vocês. Não sei como tivemos a capacidade
de ficar longe uns dos outros por tanto tempo. Vocês são como se fossem da
minha família. Eu te amo, Tony; eu te amo, Liz; eu te amo, Eliza; e eu te amo,
Amélia.
Quando Daniel concluiu as últimas palavras, João
chegou no mesmo momento, ouvindo somente a parte onde ele proferiu seu amor por
mim. João se aproximou da mesa e segurou meu braço com força.
— Vamos para casa! — falou com rispidez.
Meus amigos, sem entender o que estava
acontecendo, levantaram-se da mesa e tentaram intervir, pedindo para que ele me
soltasse.
— Não se metam em nossas vidas, suas vagabundas
baratas e seus playboyzinhos de merda! — João falou de forma agressiva.
Eu tentei intervir:
— João, não fala assim com os meus amigos. Eu vou
com você, calma — tentei apaziguar a situação constrangedora.
— Amélia, você não precisa ir com esse cara —
Tony olhou para mim preocupado.
— Está tudo bem, ele é meu namorado. Me
desculpem, pessoal — saí da pizzaria constrangida e andamos até o carro. João,
por nenhum minuto, soltou meu braço.
— Entra no carro, caralho! — João gritou comigo.
Entrei no carro confusa.
— O que está acontecendo, João? Por que você está
agindo assim?
João acelerou o carro e queimou pneu, dirigindo
em alta velocidade.
— Por quê? Por que, Amélia? É muita cara de pau
essa sua. Você pensa o quê? Que eu sou algum idiota?
— Do que você está falando?
— De você estar saindo com dois caras e duas
vadias solteiras. Você é uma mulher comprometida. Tenho que escrever um manual
de instruções para você, sua jumenta? Porque, caralho, você sabe que eu não
gosto que você saia sem mim, principalmente se tiver homem na jogada. Qual é a
sua? Me manda a real. Aquele playboyzinho filho da puta estava dizendo que te
amava? Ele já traçou você? Você está me traindo com esse filho da puta? Olha
que eu mato você e a ele!
— Para o carro! Você está me assustando! João,
para, pelo amor de Deus, você está fora de si. Olha só o que você está falando.
Por favor, para o carro e vamos conversar — comecei a chorar desesperadamente.
Ele desviou de outros carros na rodovia e quase bateu em um veículo que vinha
na contramão.
João continuou dirigindo e entrou em uma estrada
de barro, onde havia muito mato e árvores; tudo muito escuro. Meu coração
acelerou. Tentei falar com ele, mas ele não me escutava e apertava o
acelerador.
— Por favor, eu nunca te trai com ninguém. Você
sabe que só existe você na minha vida. Para o carro! Estou com medo, para onde
estamos indo?
— Amélia, você está me obrigando a fazer isso. Eu
amo você demais, porra. Já estamos chegando — foram as únicas palavras que ele
proferiu até chegar a uma casinha afastada em um sítio. Ele parou o carro e
pediu para que eu descesse.
Chorei compulsivamente, com medo.
— Entra — falou em tom um pouco alto.
Entrei na casa, sem reconhecer aquele lugar. Na
sala, havia apenas um sofá e um quadro pendurado na parede de girassol. Havia
uma televisão Turbo em cima de uma raque amarela. Havia teias de aranha nas
paredes e no teto.
João pegou meu braço com força e me olhou nos
olhos.
— Você sabe que é só minha, né?
— Eu sou só sua, por favor, vamos para casa.
— Cala a boca, Amélia. Você me magoou muito esta
noite. Tenho que te ensinar a me respeitar. Eu sou seu homem e você é minha
mulher; deve me obedecer.
Tentei puxar meu braço, e ele apertou com mais
força.
— Me solta, João Paulo! — gritei com ele.
João cerrou o punho direito e me deu um soco no
rosto. Com o impacto, caí no chão desorientada, e ele me chutou na barriga e no
rosto sem parar.
— Você é só MINHA, Amélia! Eu não vou deixar você
me fazer de palhaço. Você está apanhando porque me desobedeceu. Eu não vou ser
chamado de corno por sua causa. Está me ouvindo?
João subiu em cima de mim e apertou minha
garganta. Tentei tirar suas mãos; ele apertou com mais força. Eu estava ficando
sem ar, minha visão ficou turva e eu desmaiei.
Após algumas horas desacordada, abri os olhos.
Todo o meu corpo doía, ainda estava desorientada e demorei a perceber onde
estava. Não conseguia sentir meu corpo e minha audição estava distante. Olhei
para o lado e vi um rosto familiar: era João. Ao perceber que eu tinha
acordado, ele se levantou da cadeira e foi até mim.
— Oi, amor, você se lembra do que aconteceu? —
perguntou preocupado e choroso.
Não consegui responder, apenas olhá-lo; ainda
estava confusa sobre como fui parar no leito de um hospital. João insistiu em
falar:
—
Amor, tudo vai ficar bem, eu prometo. Estou com você, mas, caso alguém
pergunte, você foi vítima de um assalto e agressão. Ninguém tem que saber do
que realmente aconteceu aqui, combinado?
Eu ainda estava perdida, não entendia nada.
— Por que você está falando isso? — perguntei.
Ele
me abraçou e, entre lágrimas, falou:
— É melhor assim, Amélia. Eu não posso perder
você.
Fecho
os olhos e volto a dormir. Acordo com alguém mexendo em meus olhos e com uma
luz amarela direcionada ao meu olho direito.
— Oi, Amélia, tudo bem? Eu sou a doutora Ana,
estou cuidando de você. Por favor, não tente falar. Você passou por uma
cirurgia delicada no maxilar e teve algumas costelas fraturadas, mas ficará
bem. Estamos cuidando de tudo. A polícia já veio aqui algumas vezes para tentar
conversar com você, mas eu já disse a eles que você não está em condições
agora, está bem? Procure apenas descansar. Seu namorado já depôs sobre o fato
ocorrido. É triste a forma como estamos desprotegidos em uma cidade violenta
como esta, mas agora você está segura. Vou deixar você descansar.
Sinto meus olhos pesarem e, mais uma vez,
adormeço.
Os dias passam e eu me recupero. Meus pais vieram
me visitar ao saber do ocorrido. Chega o dia de tirar a atadura da minha
cabeça; meu maxilar já está totalmente recuperado. Recebo alta e volto para
casa. Ao chegar, me deparo com uma grande surpresa de boas-vindas preparada
pelo João. Ele encheu a casa com flores vermelhas e colocou uma faixa na parede
escrita: “Bem-vinda, meu amor”. Na mesa, um bolo de dois andares em formato de
coração.
Minha mãe aplaude a atitude do genro e sussurra
para mim:
— Quanta sorte você tem por ter conquistado um
rapaz tão gentil e carismático, minha filha. Eu o adorei.
Respiro fundo. João se aproxima, me abraça e me
dá um selinho, que eu não retribuo. Logo ele pergunta:
— O que foi, amor? Você está se sentindo bem? Ah,
já sei, deve estar cansada. Tudo bem, amor, pode tomar um banho e se deitar um
pouco. Estarei aqui, junto aos seus pais.
— É, filha, o João tem razão. Foram longos dias
de internação. Você deve estar muito cansada. Toma um banho e se deite.
Qualquer coisa, pode nos chamar — meu pai fala com carinho.
— Estou cansada mesmo. João, você já pode ir,
quero aproveitar um pouco a visita dos meus pais — respondo com frieza.
— Tudo bem, amor, se você prefere assim. Foi um
prazer imenso conhecer a senhora Dona Ana Rosa e o senhor Gildo. Espero
revê-los em outra ocasião. Estou indo, amor. Amanhã volto para ver como você
está — ele se aproxima e tenta me beijar, mas viro o rosto.
João fica sem jeito e vai direto para a porta,
saindo e nos deixando sozinhos. Infelizmente, minha atitude feriu o ego do meu
namorado, e ele passou a vigiar minha casa todos os dias, monitorando tudo que
meus pais e eu fazíamos.
Após uma semana, meus pais voltam para casa e eu
fico sozinha. Por um instante, penso que João entendeu que eu não queria mais
nada com ele. Baixo a guarda, começo a me sentir confortável e feliz com minha
solitude.
Estava tudo bem, exceto pelo fato de que eu
estava sendo vigiada o tempo todo e não percebia. João, cego de raiva, entra em
minha casa pela porta da frente. Afinal, eu tinha lhe dado uma chave e esse
erro foi fatal.
Eu estava tomando banho, ouvindo música, feliz
com a nova fase da minha vida — afinal, seria meu primeiro dia no trabalho após
a promoção. Passaria a receber um valor maior e teria melhor qualidade de vida.
Vida? É, eu não sabia que a minha vida seria tão
curta.
Naquele mesmo dia, João invade minha casa, entra
no banheiro sem que eu perceba e, de imediato, segura meu pescoço e bate
inúmeras vezes minha cabeça contra a parede. Não consigo reagir. Minhas
lágrimas se misturam com a água e o sangue que escorrem da minha cabeça. Não
consigo ouvir o que ele fala, não consigo falar, e, num último suspiro, um
filme da minha vida passa diante dos meus olhos. Sinto-me arrependida por ter
me relacionado com um psicopata que planejou minha morte e por ter sido fraca
por não ter dado um basta na primeira agressão.
Meu corpo sem vida e desfalecido cai no chão.
Naquele dia, não fui trabalhar, não pude atender as ligações dos meus pais. Ali
mesmo, no chão do banheiro, meus sonhos e minha vida desceram rapidamente pelo
ralo, como se nunca tivessem existido. Morri pelas mãos do homem em quem
confiei meu coração — o mesmo que me arrancou brutalmente a essência e a vida.
No dia do meu velório, recebi uma coroa de
flores, com flores brancas simbolizando a “paz” dele, por saber que eu não
pertenceria a mais ninguém, e flores vermelhas, simbolizando cada agressão,
xingamento, abuso, humilhação e dor que passei. E adivinha quem chorou em cima
do meu caixão? Isso mesmo: o mesmo homem que me matou. O que ele não sabia era
que eu deixara uma carta de desabafo sobre tudo que ele tinha feito. Durante a
investigação policial do meu homicídio, a polícia descobriu a carta e deu ordem
de prisão a João ali mesmo, no meu velório.
Minha mãe, em choque com a minha morte, visitou
João na prisão em busca de respostas, mas, para recebê-la, ele fez um pedido
“especial”: uma flor vermelha. Minha mãe concordou e foi até a cadeia encarar
meu assassino.
Sentada de frente a ele, sentiu ódio e perguntou,
olhando nos olhos:
— Por que você fez isso?
Com os olhos marejados, ele estendeu a mão
direita para que ela lhe entregasse a flor. Ela o fez. Ele levou a flor ao
nariz, cheirou e respondeu:
— Porque eu a amava. Obrigado por trazê-la até
mim.
E essa foi a última flor que ele me ofereceu.
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